De Yap a Chicago: uma viagem pela história do dinheiro

Por: Isaac Cattan

Por mais abstrato que possa parecer, “dinheiro” não é o conjunto de cédulas e moedas que guardamos em nossos bolsos. Estas cédulas e moedas têm valor apenas por um único motivo: a confiança. Confiança de que elas serão aceitas como meio de pagamento ou troca por outros bens ou serviços que desejamos, a qualquer momento e por qualquer pessoa.  “Dinheiro”, assim, é uma ideia compartilhada por uma sociedade como forma de facilitar as trocas, verificável no nosso dia-a-dia por pedaços de papel ou metal aos quais se atribui –pela cor, forma ou pelo conteúdo escrito– um determinado valor, superior ao valor real dos materiais de que são feitos.

Um exemplo primitivo do papel da confiança para a existência do dinheiro foi dado pelos habitantes de Yap, uma pequena ilha que abriga um dos quatro Estados Federados da Micronésia. Em tempos desconhecidos, os habitantes de Yap expuseram em determinado local da ilha grandes rochas calcárias, que lá permanecem até hoje. Apesar de nunca terem sido retiradas de seus lugares, cada uma das pedras pertencia a um habitante ou a uma família, e poderia ser trocada por qualquer bem. Quando dois habitantes de Yap resolviam trocar uma das pedras por qualquer bem ou mercadoria, todos os habitantes reconheciam que tal pedra passaria a pertencer a outro dono.

A espantosa valorização do bitcoin em 2017 atraiu a curiosidade no mundo inteiro

Muito tempo depois, no início do século 20, a humanidade havia desenvolvido o chamado “papel-moeda”, que pode ser facilmente transportado por cada um de nós. No Brasil, cada cédula funcionava como título ao portador representativo de certa quantidade de ouro, contendo inscrita a promessa de que qualquer pessoa poderia levá-la à Caixa de Estabilização, no Rio de Janeiro, e receber o valor correspondente em barras ou moedas de ouro. Naquela época, era possível dizer que o papel-moeda tinha um valor em si mesmo.  Em 1933, acompanhando uma tendência mundial, o Brasil aboliu a chamada “cláusula-ouro”,[1] e assim o papel-moeda passou a ter o valor nele indicado, sem que representasse uma verdadeira riqueza palpável, e a ser protegido pela proibição de qualquer pessoa recusá-lo como meio de pagamento (o chamado “curso forçado”).  Com isso, o Estado Brasileiro  passou a ser o responsável por formular políticas para manter o valor da moeda que ele mesmo emite,[2] cujo valor acaba sendo dado pelo mercado, de acordo com a confiança (que reaparece na história do dinheiro) da sociedade e do mundo na economia do País.

Desde então, parecia inquestionável a hegemonia dos Estados Nacionais como únicas entidades competentes para emitir moeda. Porém, com o surgimento do blockchain (tema tratado no texto “Por Dentro do Blockchain”) e seu sistema de registro virtual supostamente inviolável, criou-se um ambiente “online” que –por que não?– poderia ter suas próprias moedas, evitando a necessidade de câmbio, ou troca de moedas de um país por moedas de outro, para a realização de compras e vendas.

Assim surgiram as moedas virtuais, ou “criptomoedas”, que têm despertado admiração e receio ao redor do mundo, sendo a mais conhecida chamada de “Bitcoin”. Como não são produzidas e emitidas por algum Estado, as criptomoedas são emitidas por meio do trabalho de “mineradores”, pessoas ou empresas concentrados em solucionar, com uso de complexos sistemas de informática, chaves virtuais criadas no ambiente do blockchain e, assim, “liberar” o uso de uma nova unidade de determinada criptomoeda. A atividade de “mineração” envolve grandes empresas e computadores superpotentes, e deverá consumir em 2018, no mundo, o equivalente a toda a necessidade energética da Argentina.[3] Como a maioria dessas atividades de mineração é realizada na China, um país com matriz energética ainda bastante dependente de fontes térmicas, há repercussões ambientais significativas em decorrência do desenvolvimento das criptomoedas no ritmo atual.

Para o financiamento de projetos, muitas empresas têm criado suas próprias criptomoedas

Para o financiamento de projetos, muitas empresas têm criado suas próprias criptomoedas, captando recursos ao oferecê-las ao público em geral, por meio das chamadas “Initial Coin Offerings” (“Ofertas Iniciais de Moedas”) ou “ICOs”. Um exemplo é a Kodak, tradicional empresa do ramo de fotografia, que lançou em janeiro de 2018 a “KodakCoin”, moeda virtual para pagamento de licença de uso de imagens fotográficas. A novidade foi suficiente para fazer o valor das ações da empresa na Bolsa de Nova York praticamente dobrar no dia 10 de janeiro.

Governos de diversos países, preocupados com a perda de controle sobre os fluxos de dinheiro e com a dificuldade de cobrar impostos sobre as transações com criptomoedas, têm se posicionado de forma contrária –ou, pelo menos, cautelosa– em relação à aquisição e uso deste tipo de ativo. O Banco Central do Brasil, por exemplo, emitiu o Comunicado nº 31.379, de 16 de novembro de 2017, segundo o qual a compra de criptomoedas pode acarretar “perda de todo o capital investido” e “as moedas virtuais, se utilizadas em atividades ilícitas, podem expor seus detentores a investigações”. Já a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia que regula o mercado de capitais, proibiu os fundos de investimento brasileiros de adquirirem criptomoedas, argumentando que elas não podem ser qualificadas como ativos financeiros, e instruiu seus gestores a aguardarem a formulação de orientações técnicas antes de aplicarem recursos no investimento indireto em criptomoedas (por exemplo, através de empresas controladas pelos fundos).[4]

Na contramão das posturas estatais, a Chicago Board Option Exchange, maior mercado organizado de opções e contratos futuros dos Estados Unidos (supervisionada pela Securities and Exchange Commission – SEC, o equivalente norte-americano à CVM), passou em dezembro de 2017 a oferecer espaço para a negociação de contratos futuros (aqueles em que as partes se comprometem a comprar ou vender determinado bem por valor predeterminado, “apostando” na valorização ou desvalorização do bem) vinculados à cotação da Bitcoin. Isto deu grande impulso à valorização dessa criptomoeda.

No entanto, nos últimos dois meses, o mundo assistiu a uma acentuada desvalorização da Bitcoin. A grande oscilação em seu valor de compra é resultado da falta do elemento principal de qualquer moeda –o qual, sem surpresa, já sabemos identificar: a confiança. Não há como confiar, ainda, que a Bitcoin, ou outras moedas virtuais, serão comercialmente aceitas num futuro próximo. Ainda, estas moedas tampouco contam com lastro, ou seja, a garantia dada por seus emissores de que elas representam alguma riqueza realmente existente, como já foi o ouro.

Por isso, ainda há fortes razões para acreditar que as criptomoedas são objeto de um fenômeno econômico chamado “bolha especulativa”, caracterizado pela rápida e exagerada valorização de determinado ativo se comparada com seu valor real de custo ou de uso, graças a um círculo vicioso em que a alta procura por tal ativo gera aumento dos preços e vice-versa.

A história da relação do ser humano com o dinheiro, das praias da Ilha de Yap à Bolsa de Chicago, mostra que a evolução da moeda é inevitável. Mas também ensina que, seja qual for o estágio evolutivo em que se encontre, nenhuma moeda poderá existir se não contar com “aquele tal” elemento essencial.

*colaborou Rodrigo Dias

[1] Decreto nº 23.501, de 27 de novembro de 1933; [2] Desde 1964, com sua criação, o Banco Central do Brasil passou a ser o órgão da Administração Federal incumbido dessa função; [3][4] Ofício Circular nº 1/2018/CVM/SIN, de 12 de janeiro de 2018.